domingo, 5 de dezembro de 2021

Transmissões

À chegada dele ao aeroporto aguardavam-no milhares de pessoas. ao vê-lo descer as escadas as pessoas batem palmas, acotovelam-se e gritam o seu nome; já no átrio, os polícias agitam-se para o manterem em seguurança; ele caminha dentro do cordão de segurança, no meio de braços esticados que o querem tocar... e, acto contínuo, arrasta-se ou é arrastado pela polícia para a rua e é metido numa carrinha que arranca imediatamente. nenhuma pausa neste pequeno percurso entre o início das escadas e a saída do aeroporto, nenhuma elementar saudação (diziam alguns à boca pequena). de súbito aquela gente no aeroporto sente frio como se, sem se darem conta, a temperatura do ar tivesse repentinamente descido para níveis nunca antes registados na cidade; e fome, que pouca gente ali havia sentido, daquela que se experimenta depois de vários dias de abstinência. foi nessa altura que tudo começou, as pessoas invadem salas do aeroporto com sinais "proibida a entrada a pessoas estranhas" e lojas, procurando e açambarcando agasalhos e comida. ninguém que ali estivesse tinha visto abrir-se uma carteira que fosse.
ainda a caminho de casa ele diz aos pais, que iam nos bancos da frente, que sentia um calor insuportável, de tal maneira que sua, como se usa dizer, em bica, e experimenta uma sensação nunca antes sentida de enfartamento, como se tivesse comido vários bois.

Interpelações

 - O senhor tem horas certas?

- Sim tenho. (Sempre o passante, sabe-se lá porquê, as pode ter muito adiantadas ou atrasadas - não incertas, que essas são outras horas - e se fosse assim quem pergunta diria que não, muito obrigado). São 14:08

Suspiros

Na sala de reuniões enquanto o director apresenta os assuntos e sobre eles os presentes tomam posição, por diversas vezes houve quem, de quando em quando, suspirasse de forma sonora (coisa bem diferente seria se bufassem, que já aconteceu mas não desta vez). Sabe-se lá porquê tantos suspiros... por isso nenhuma consideração ou sentença, que bem podem deles depender os corpos humanos destas almas suspiradoras.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Chegadas que são partidas

À chegada dele ao aeroporto aguardavam-no milhares de pessoas. Ao vê-lo descer as escadas, as pessoas batem palmas, acotovelam-se e gritam o seu nome. Já no átrio, os polícias agitam-se para o manterem em segurança, ele caminha dentro do cordão de segurança, no meio de braços esticados que o querem tocar... e, acto contínuo, arrasta-se ou é arrastado pela polícia para a rua e é metido numa carrinha que arranca imediatamente.
 
Nenhuma pausa neste pequeno percurso entre o início das escadas e a saída do aeroporto, nenhuma elementar saudação (diziam alguns à boca pequena).
 
De súbito, aquela gente no aeroporto sente frio como se, sem se darem conta, a temperatura do ar tivesse repentinamente descido para níveis nunca antes registados na cidade; e fome, que pouca gente ali havia sentido, daquela que se experimenta depois de vários dias de abstinência. Foi nessa altura que tudo começou, as pessoas invadem salas do aeroporto com sinais "proibida a entrada a pessoas estranhas" e lojas, procurando e açambarcando agasalhos e comida. Ninguém que ali estivesse tinha visto abrir-se uma carteira que fosse. 
 
Ainda a caminho de casa ele diz aos pais, que iam nos bancos da frente, que sentia um calor insuportável, de tal maneira que sua, como se usa dizer, em bica, e experimenta uma sensação nunca antes sentida de enfartamento, como se tivesse comido vários bois.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Ainda o Comboio

Num café na estação de Campanhã “E a M.? Está ótima. Nunca mais me ligou! Diz-lhe que mando um beijinho de chateada. Diz-lhe mesmo: a C. manda te um beijinho de chateada”

Ali fora um rapaz espera na plataforma por outro rapaz, que entretanto chega. Beijam-se nada chateados.

Na estação de Rio Tinto ouve-se a voz que informa “Porto Campanhã”. O velho que vai à minha frente meneia a cabeça, e como a rapariga ao lado sorri, atira “é mesmo para enganar”. A rapariga diz que os automatismos também devem ter os seus dias. Saíram ambos em “Contumil” (de acordo com a mesma voz, que engana).

terça-feira, 4 de setembro de 2018

(Des)Sincronias

Hoje a viagem de comboio foi estranha e pelo menos duas pessoas não saíram onde queriam . É que a voz que informa as estações fá-lo com um atraso de 2 ou 3 estações (também estou baralhado). Como as pessoas vão na sua vida e pensamentos, nem sempre se lembram que a voz está atrasada, ficam baralhadas. Agora mesmo um casal terá de sair em Esmeriz quando o que queria mesmo era sair na Trofa.
 
Amanhã os patrões e fregueses e médicos e todos quantos esperam esta gente “faltosa”, hão de pasmar quando ouvirem a razão. “Pois sabe que o comboio quando anunciou Barrimau já ia em Mouquim. Saí para apanhar o comboio de volta, entrei, depois de esperar uma hora. O raça da voz deste outro ia certa, mas dei um desconto, de tanto matutar na dessincronia, e quando dei por mim estava em Ermesinde. Desisti”

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

As pessoas que viviam naquela espécie de cidade-estado e as dos estados vizinhos dirigiam-se em várias direcções, como sempre aconteceu e acontece ali e em toda a parte. Umas dirigiam-se para a estação de metro mais próxima, outras seguiam caminhando, havia as que entravam em auto estradas, outras que delas saíam, outras ainda seguiam percorrendo estradas regionais... Quem tinha filh@s nas escolas para lá se dirigia. Tudo isto se passava num final de tarde. No entanto, era visível, se se olhasse de cima, que os movimentos da generalidade das pessoas acabavam tendendo para um ponto.

Como os muçulmanos na hora da oração se colocam, onde quer que estejam, voltados para Meca, também ali as pessoas, não só se voltavam para aquele ponto, como se dirigiam para lá como podiam, a pé, de carro, de metro... Os que tinham filhos à sua espera ali e acolá, para lá se dirigiam mas depois de os terem consigo, notava-se, convergiam para esse ponto (mudam-se as vontades).

Portanto aquilo que naquele fim de tarde parecia ser humana movimentação que se desloca cada qual para seu lado, a dada altura era humaníssima massa que convergia na direção daquele ponto que era o centro da capital: Washington DC.

Como as notícias correm depressa, e as más mais ainda, o presidente mandou chamar representantes de todas as forças militares e policiais disponíveis. O plano de segurança foi traçado e as forças distribuídas sobretudo em torno da Casa Branca. Em pouco tempo os parques norte e sul da dita casa estavam cheios de gente, em poucas horas todo o distrito estava repleto de gente pacífica movida por uma vontade comum.

Não se registaram incidentes à excepção do que ocorreu naquelas primeiras horas com uma rapariga que tropeçou num passeio: nos movimentos atabalhoados que fez para equilibrar-se de novo, o polícia, meio ausente até aí, suspeitou que se tratava de uma provocação e assentou-lhe uma bastonada. Sobre queda, coice. Não se ouvem palavras de ordem, seriam redundantes. Suspira o coração de uma bendita velha. O espírito voa.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Da Casa da Música à Trindade

Na estação Casa da Música estão na carruagem 25 almas humanas, das quais 12 são mulheres. Silêncio. Na estação seguinte  entram 4 pessoas, 2 são mulheres, um dos homens não tem um olho e uma mulher traz consigo um saco amarelo. À medida que o metro se move a carruagem enche-se de luz - é a Lapa, a luz do sol entra directa, não filtrada. Um homem que vai em pé encosta-se à mulher que se agarra ao ferro de apoio e beija-a no pescoço  por cima do cabelo. Na estação da Lapa, a mulher do violão sai, entra um homem que tropeça na perna alçada de uma mulher que vai sentada. Ele não diz nada, ela olha-o insegura e desconfiada e nota-se que engole (não se sabe se em seco ou não). Têm ambos a pele macilenta e a ambos parece faltar dentes. Ele vai até ao fundo da carruagem e lá se encosta. Saio, como muitas pessoas, na Trindade e aí havia de voltar a entrar pouco depois vindo de São Bento de onde não partirá o comboio por causa da greve do pessoal das infraestruturas.
(imagem: urban.sketchers-portugal.blogspot.pt)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Fragmentos

- Gosto muito de sardinhas pequenas, o dizer é acompanhado com o indicador da mão esquerda esticado e a outra mão, assente naquela, perpendicular e a meio do metacarpo
- São boas passadas em farinha e fritas
- Com farinha de milho

- Sim é a melhor, mas quando não há também são boas com farinha triga.

 
Da próxima vez que constarem da lista dos pratos do dia, vou pedir umas poucas, depois de saber se foram fritas com farinha de milho ou de trigo.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Inspiração revelada

Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor. As palavras haviam sido lidas, embora de cor as soubesse, pelo especialista presente na reunião que juntara um grupo de pessoas para reflectir sobre a condição humana, mais concretamente sobre o sentido da vida humana. O especialista, também em frases feitas, dá-se conta que funda naquela espécie de máxima a sua esperança aguardando para amanhã a revelação desse amor sonhado. Uma mulher de camisa azul que ali estava interveio. O que me livra da miséria desses sentimentos é o meu egoísmo lúcido e consequente. Na sala fazia-se silêncio, resultado também do compromisso dos participantes em ouvir atentamente o que cada um tinha para dizer, de preferência, acrescento eu, sem fazer juízos morais. Dizíamos que se fazia silêncio, mas depois das palavras da mulher de camisa azul, parece ter-se instalado um mais profundo silêncio, fruto da própria imobilização dos participantes, que sempre acontece quando alguém se sai com algo inesperado e todos ficam, por instantes, imóveis como se ajudasse a ouvir melhor as palavras que se seguem. A mulher de camisa azul continuou. Este egoísmo não é semelhante àquele que tornou mais corcunda o já marreco Ricardo III Shakespeariano ou que assassinou o caprichoso Calígula. O aludido egoísmo consiste em reconhecer a humanidade de cada ser humano, não reduzindo a sua realidade complexa aos seus comportamentos, por um lado, e por outro não o tomando como instrumento ou necessidade para a realização dos meus fins. Sob esta perspectiva, os seres humanos afiguram-se-me realidades totais e contudo abertas ao possível e é aí que, como o outro fosse um espelho, tomo conhecimento da plenitude do meu ser onde a eterna possibilidade do meu querer encontra a sua máxima liberdade.

Transmissões

À chegada dele ao aeroporto aguardavam-no milhares de pessoas. ao vê-lo descer as escadas as pessoas batem palmas, acotovelam-se e gritam o ...